“Em um grau considerável, o sonho de fazer do Líbano a Suíça do Oriente Médio foi realizado.”

Assim conclui-se um artigo de 1958 de um autor americano que, segundo sua assinatura, “trabalhou para instituições financeiras em Beirute entre 1953 e 1957”. O sonho suíço, neste caso, referia-se ao boom econômico do Líbano na primeira metade da década de 1950 – que o autor credita inteiramente às políticas de livre mercado e à ausência deliberada de planejamento de desenvolvimento socioeconômico pelos governos libaneses.

Em outubro de 1982, apenas alguns meses após a invasão israelense do Líbano, a ARAMCO World Magazine publicou uma edição intitulada “Paraíso perdido: um elogio ao Líbano”, repleto de artigos escritos por ocidentais que vivenciaram o Líbano antes da guerra. Juntos, eles transmitem a sensação de um mundo perdido, lamentando a passagem de uma era de inocência, prosperidade e abundância.

Hoje, vemos discursos semelhantes, disseminados pelos partidos que governam o Líbano, bem como por seus cidadãos médios. Qual feed de mídia social está livre de postagens cheias de nostalgia e imagens do Líbano pré-guerra como um paraíso idílico perdido?

Mas como muitas vezes acontece: nem tudo que reluz é ouro.

Se diminuirmos o zoom das conhecidas fotografias dos estilos glamourosos e chamativos de uns poucos gatos-pingados, surge uma imagem mais sombria. Uma onde o “livre mercado” do Líbano trouxe miséria em larga escala para a população, com apenas uma pequena minoria desfrutando de seus frutos.

O imaginário de um dourado Líbano pré-guerra vai bem além da nostalgia por um passado que nunca existiu. Ele funciona no presente e na direção do futuro, ativa e obstinadamente trabalhando para sustentar o mito de que o Líbano só pode prosperar com uma economia de livre-mercado com uma quase inexistente intervenção do Estado.

O verdadeiro Líbano dos anos 50

Em 1959, o então presidente Fuad Chehab comicionou o IRFED, uma ONG francesa, para fazer um estudo extensivo das condições socioeconômicas do país nos grandes centros urbanos e em oito áreas rurais. Diferente de seus predecessores e a maioria de seus contemporâneos, Chehab veio de um passado militar que o expôs ao baixo desenvolvimento (desigual, quando havia) através do país. Ele concebeu o estudo IRFED como um trampolim para o planejamento desenvolvimentista.

As conclusões do IRFED, apresentadas ao governo em maio de 1961 e empregando mais de 140 indicadores de desenvolvimento, são uma acusação comprometedora das políticas econômicas dos primeiros governos independentes do Líbano.

Indicadores socioconômicos para áreas em Akkar, Baalbek e Jabal Amel em 1960. O raio vai de 0 (ausência de desenvolvimento) para 4 (alto nível de desenvolvimento). Fonte: IRFED, “Le Liban au Tournant”, 1963.

As áreas com subdesenvolvimento mais extremo foram encontradas nas regiões de Akkar, Baalbek e Jabal Amel, cujos residentes sofriam com uma precária infraestrutura, educação e serviços de saúde pública. O quadro acima mostra os piores índices a pesquisa (os outros indicadores, no entanto, não eram muito melhores).

Mesmo em Beirute, a jóia da coroa da “era de ouro” do Líbano, havia buracos.

Crianças em Akkar indo buscar água num poço, Julho de 1967. (Foto cortesia do Arquivos do Líbano/أرشيف لبنان).

À época que o estudo do IRFED foi realizado, os “subúrbios miseráveis de Beirute” (como alguns se refere às vizinhanças ao sul da capital) ainda eram relativamente pequenos. Quinze anos depois, nás vésperas da Guerra Civil, eles vieram a abrigar milhares de refugiados palestinos, trabalhadores sírios e retirantes libaneses escapando das privações extremas da subserviência quase feudal de suas cidades natais rurais, controladas por granes latifundiários e empresas agro-industriais.

Ainda em 1960, as condições de vida em outros bairros de Beirute eram estarrecedoras.

Condições de vida nos quatro bairros de Beirute, 1960. Fonte: IRFED, “Besoins et Possibilités de Développement du Liban. Étude Préliminaire: Volume Annexe”, 1960-1961; IRFED, “Le Liban au Tournant”, 1963.

A região industrial de Medawar, constituída em grande parte de comunidades armeno-libanesas, trabalhadores sírios e migrantes rurais obtiveram uma nota de desenvolvimento de 1 de 4. A moradia era, em grande parte, constituída por casas improvisadas superpovoadas, com poucos lares detendo acesso a eletricidade e com redes de telecomunicação e saneamento básico quase inexistentes. Cerca de 90% dos habitantes do bairro foram catalogados no relatório como “misereuse” (destituídos/miseráveis) e “classes populaires” (pobres), significando que esua renda estava abaixo de 1.200 ou 2.500 liras libanesas por ano, respectivamente (ou mais ou menos entre 3.600 e 7.500, se formos pela taxa de câmbio dos anos 1960). Em outras palavras, sua renda mal era párea para a subsistência.

A situação não melhorava muito indo para Tariq Jdide, onde 85% dos moradores ganhavam menos de 2.500 liras libanesas e viviam em cortiços lotados com uma primitiva infraestrutura de saneamento e frequentavam escolas também lotadas e com um equipamento nada moderno.

No mais centrado Serail, não haviam escolas públicas e seus moradores viviam em moradias superpovoadas, parecidas com favelas, em ruas cheias de lixos, com direito a todos os maus efeitos à saúde pública que isso ocasionava.

As desigualdades geográficas eram combinadas com a desigualdade de renda entre os lares. De acordo com a pesquisa do IRFED, metade de todos os alres no Líbano viviam na pobreza ou miséria na década de 60.

Quem, então, se beneficiou da benéssies da brilhante era do Líbano?

Famílias indigentes estavam ganhando abaixo de 1.200 liras libanesas por ano; famílias pobres entre 1.201 e 2.500; famílias de classe média, entre 2.501 e 5.000; famílias abastadas entre 2.501 e 15.000; já as famílias ricas, acima 15.000. Em 1964, 1 lira libanesa valia US$ 3.1 dólar, segundo o Banco Central. Fonte: IRFED, "Besoins et Possibilités de Développement du Liban. Étude Préliminaire: Tome 1," 1960-1961.

Era de Ouro para quem?

O comprometiemento do Líbano com a ideologia do livre-mercado foi-lhe enraizado logo na independência, em grande parte graças aos “Novos Fenícios”, um grupo de banqueiros com pensamentos parecidos e conexões políticas e empresários que conseguiram fazer as ideias de livre mercado em política oficial do governo.

Os Novos Fenícios visavam um país construído sobre a área de serviços e do setor financeiro, onde a agricultura e a indústria seria uma questão postergada; eles pavimentaram a estrada para um Estado libanês sem planos de desenvolvimento socieconômico para esses setores produtivos, mantendo-se através por uma força de trabalho que penava sobre duras e degradantes condições.

O St. George, hotel de referência inaugurado em 1934 e propriedade de investidores franceses até o final da década de 1950, onde, segundo George Corm, “se você fazia parte da sociedade abastada, era o lugar onde as pessoas vinham tomar uma bebida.”, 2 de maio de 1965. (Arquivos da Universidade de Indiana, Coleção Charles Cushman).

Sua visão de mundo é melhor exemplificada nos escritos de Michel Chiha, um membro proeminente da coorte que participou da elaboração da Constituição de 1926 e cunhado do primeiro presidente pós-independência do Líbano, Bechara al-Khoury. Chiha argumentou que o Líbano foi feito para o livre mercado: a geografia do país, o ethos empreendedor que permeia seu povo desde os tempos antigos, sua heterogeneidade sectária – tudo exigiam a adoção de políticas de livre mercado, começando pelo livre comércio e movimento de capital.

Os controles cambiais foram reduzidos em novembro de 1948 e eventualmente eliminados em 1952, permitindo que o capital libanês “se movesse livremente pelo mundo”.

O capital global também foi recebido no Líbano, mediado por alguns poucos selecionados. Senhores feudais rivais, empresários e comerciantes nos setores de serviços e finanças – seja por meio de cargos públicos ou em conluio com detentores de cargos públicos – transformaram o Líbano em um canal para a importação de capital e commodities ocidentais e monopolizaram as principais indústrias importantes.

Em 1974, apenas 13 famílias controlavam 47% do capital industrial total, 30% do total dos ativos bancários e 24% do capital total do comércio, agricultura e empresas de serviços; apenas quatro empresas politicamente ligadas eram responsáveis pela importação de cerca de dois terços de todas as mercadorias do Ocidente.

O crescimento considerável no número de funcionários do governo sob Bechara al-Khoury – de menos de 6.000 em 1947 para 14.800 em 1953 – serviu para encher a administração pública libanesa com laranjas que usavam seu cargo para promover os interesses comerciais de uns poucos, por meio de lucrativos contratos de obras públicas.

O escândalo de corrupção da “Autoridade de Telefone”s no início dos anos 1950 é um exemplo proeminente do tipo de clientelismo comumente praticado durante a presidência de al-Khoury. De acordo com um relatório parlamentar publicado em Annahar em 1953, entre 1947 e 1951 a entidade passou de uma empresa pública lucrativa e funcional com 380 funcionários para uma com 2.200 funcionários públicos, com receitas cada vez menores e deficitárias. O relatório especifica que os novos funcionários foram indicados por ministros, parlamentares e latifundiários – mas se abstém de nomeá-los. A nova equipe fez pouco além de ganhar um salário no final do mês, forçando a Autoridade a tomar um empréstimo de um banco local para cobrir seu déficit.

Reformas fracassadas

Em 1958, uma breve guerra civil enraizada no antagonismo de classes eclodiu, quando grupos paramilitares de esquerda simpatizantes do presidente do Egito Gamal Abdel Nasser e da nascente República Árabe Unida travaram uma luta armada contra o presidente oligárquico Camille Chamoun e seu governo. Em setembro daquele ano, após um impasse militar devido à chegada de fuzileiros navais norte-americanos convocados por Chamoun, o comandante do Exército Fuad Chehab assumiu a presidência.

Consciente das disparidades socioeconômicas, o mandato de Chehab foi caracterizado por reformas importantes na administração pública, bem como tentativas modestas de superar as clivagens socioeconômicas, como a criação do Fundo Nacional de Previdência Social.

Mas os chehabistas que tendiam para a mentalidade reformista tornaram-se cada vez mais repressivos, particularmente após a tentativa fracassada de golpe do Partido Social Nacionalista Sírio, em dezembro de 1961. E quando o mandato de Chehab terminou em 1964, as reformas desaceleraram significativamente.

À medida que as tensões geopolíticas cresciam, os latifundiários – ou “comedores de queijo”, como Chehab os chamava em referência à sua devoração do setor público – conseguiram expulsar os chehabistas do cargo em 1970.

O novo presidente e o novo primeiro-ministro ‘feudal’, Suleiman Frangieh e Saeb Salam, foram obrigados a formar um governo que supostamente responderia à crescente pressão vinda de baixo. O resultado foi o anômalo “governo da juventude” (houkoumat al-shabab) composto por jovens tecnocratas desconhecidos que se comprometeram a decretar reformas em larga escala há muito esperadas.

Seus esforços foram frustrados antes de sequer começarem pelo parlamento e pela classe mercantil.

Foi caso do Decreto [número] 1943, em 1971, por meio do qual o Ministro da Fazenda Elias Saba tentou aumentar as taxas alfandegárias sobre mais de 500 mercadorias importadas – incluindo artigos de luxo, como carros caros e mercadorias que produziam equivalentes localmente – para proteger a indústria local e empregar receitas adicionais do governo para o desenvolvimento socioeconômico.

Uma greve de 10 dias de comerciantes e lojistas em Beirute, apoiadas tacitamente pela oligarquia, anulou o decreto sob o raciocínio absurdo de que “prejudicaria o turismo e a classe média”.

Da mesma forma, o ministro da saúde Dr. Emile Bitar perdeu sua luta amarga contra os importadores farmacêuticos para tornar a saúde num geral mais barata e acessível.

Um punhado de farmácias e importadores farmacêuticos, todos ligados à oligarquia vigente, monopolizaram o mercado importando e vendendo apenas os medicamentos mais caros tendo em vista lucros astronômicos. Esse cartel conseguiu impedir qualquer crescimento substancial da indústria farmacêutica local, fazendo lobby por altas tarifas sobre equipamentos necessários para os produtores locais.

Bitar tentou colocar um teto em seus lucros, diversificar os tipos de medicamentos importados e apoiar a indústria farmacêutica local. Farmácias e importadores o acusaram de destruir a economia de livre mercado do Líbano e criar escassez de medicamentos.

Em última análise, com pouco apoio do parlamento e de seus colegas no Conselho de Ministros, Bitar renunciou em protesto em dezembro de 1971.

Às vésperas da guerra civil, as tentativas de cima para baixo de quebrar parte do domínio oligárquico foram frustradas.

Caricaturas publicadas na imprensa local no início da década de 1970 retratando o ministro da Saúde Dr. Emile Bitar lutando contra o cartel farmacêutico, simbolizado por uma cobra e um polvo. (Cortesia de Karim Emile Bitar e Phares Zoghby Library and Archives, Kornet Chehwan).

Os trabalhadores e estudantes feridos ou mortos pelo aparato de segurança do Estado também não têm lugar na narrativa da era áurea.

Em abril de 1976, um ano após o início da guerra civil, o senhor da guerra e ex-presidente Camille Chamoun disse sem rodeios a um repórter: “[O Líbano é] um país de livre iniciativa e o Líbano foi construído e se tornou [...] próspero graças à iniciativa privada .” Ele acrescentou: “Infelizmente, existem dois tipos de pessoas no Líbano: pessoas que querem trabalhar e ganhar dinheiro e pessoas que querem ganhar dinheiro sem trabalhar”.

Tal declaração não é surpreendente, vinda de um membro importante da oligarquia libanesa. Ao menos se fosse fosse verdade…

Fonte: thepublicsource.org